domingo, 27 de junho de 2010

Realidade e caos

Seguiam a passos firmes aqueles dois indivíduos. Um alto, forte, espáduas largas, aparentando quarenta anos. Trazia à cintura um revólver calibre 38, que o acompanhava sempre. Outro era baixo, franzino, com enormes suíças e expressão carrancuda. Também trazia à cintura o velho companheiro de batalhas, seu instrumento de trabalho, com o qual mantinha enorme intimidade, pois já era, com apenas seus vinte e nove anos de idade, o atirador mais habilidoso de todo o batalhão.

Ambos mantinham aspecto grave, parecia que nada pudesse alterar seus trajetos. Caminhando decididos em direção ao coreto, que ficava no centro daquela praça onde, outrora, passavam-se horas agradáveis aos sons das serenatas e declarações de amor improvisadas pelos galanteadores e seresteiros daquela época, oferecidas às suas musas inspiradoras. Hoje, porém, não sobraram nem alguns versos livres que pudessem fazer a alegria de alguns mais nostálgicos.

Tudo era um breu só. As trevas engoliam com voracidade alucinante toda a beleza das flores. Toda a poesia dos aromas que ficavam no ar, agora, era tragado veementemente pelas hordas do império negro. Não se podia enxergar além de uns poucos metros ao redor. O brilho dos sorrisos angelicais das almas femininas de outros tempos ficara para sempre esquecido no passado.

Hoje a realidade era cruel. Tão mais cruel quanto mais os dois homens armados aproximavam-se do local alvejado: o coreto central. Lá jazia, ainda com o sangue quente a percorrer o solo desgastado do antigo centro de atrações, o corpo de uma jovem. Aparentando dezessete anos, menor de idade, vivia nas ruas da agonia e do destino. Destino este que lhe fora imposto pela irresponsabilidade de ações atrozes dos seres humanos. Aquela jovem, ali inerte, como folha seca de árvore que, em determinadas épocas do ano, cai ao chão para misturar-se à terra, a qual lhe oferecera o seu melhor alimento. Era como os frutos degenerados pelos agentes nocivos da própria natureza, que os maculam e abreviam suas vidas a um curto espaço de tempo, privando-os de serem saboreados com satisfação pelos paladares mais apurados.

Agora era o fim. Talvez nem isto; ou o que é pior, só continuidade. O fato é que jazia mais uma vítima das selvagerias urbanas, que pelo "prazer" de alguns efêmeros minutos, geram vidas sem rumos, sementes inférteis, condenadas pelo próprio existencialismo. Que fazer? - Viver, talvez... Mas, será que poderemos tornar-nos tão insensíveis a ponto de ignorarmos o que acontece ao nosso redor? A violência banal e estúpida, cada vez mais despropositada, irracional - entretanto, cada vez mais humana -, está aí, nas ruas; virando qualquer esquina você depara com uma delas. Tão evidente e espontânea quanto o calor do sol. Esta violência que nos cinge a mente e a limita-nos a vivermos trancafiados a "sete chaves" em nossas casas, apartamentos, humildes barracos. "Os assassinos estão livres. Nós não estamos..." (Renato Russo, Legião Urbana, Teatro dos Vampiros).

O que sobrará de nós daqui a uma década ou o que seremos nós após este período? Para ambas as questões, a resposta é uma só: nada. Sobrará coisa nenhuma, seremos um nada, salvo se tomarmos providências já. Que providências, contudo, poderíamos tomar? Como agir? Unamo-nos e concentremo-nos nossos pensamentos e reais discussões numa só corrente e então descobriremos qual a solução mais exeqüível ao caso. Começando, por exemplo, por tratar as pessoas como gostaríamos de sermos tratados. É simples assim: você entrega gentileza e cortesia e a receberá de volta com satisfação. Ora, se quando nos tratam mal, não desejamos reagir na mesma via? Por que não tomarmos a iniciativa das boas ações? O que não se pode é ficarmos sem fazer nada.

“O mundo que deixaremos aos nossos filhos depende dos filhos que deixaremos para o mundo”. Frase dita no 2º Fórum Internacional Criança e Consumo. Esse é o foco hoje. Contardo Calligaris disse certa vez, com muita propriedade, "As crianças são adultos em férias". Pois, eles estão fazendo tudo que os adultos precisam conquistar para merecer, enquanto eles não precisam fazer nada e já o recebem. Onde está o sabor do mérito? Não há e não quer parecer-me que anda sendo tão urgente, uma vez que se recebe "tudo aquilo que eu não tive, quero dar aos meus filhos". Compreendo que devamos zelar pelo bem-estar físico e psicológico dos nossos filhos. Isso, todavia, não significa dar materialmente tudo que pedem. Nós não conseguimos materialmente tudo que queremos e do que precisamos! Cuidar desse bem-estar de que falamos é alimentar a alma com boas lições diárias para a firmeza do caráter, para a construção sólida da personalidade, exemplos de cidadania e respeito ao próximo. Isso, pasmem os mais céticos, trará inúmeros resultados positivos a uma vida feliz aos nossos filhos. E vida feliz de uns será vida feliz para muitos.

Muito bem ilustra essa relação de ética e atenção as cenas impagáveis e extraordinariamente interpretadas pelos atores Tony Ramos e Dan Stulbach, no filme "Tempos de Paz" (direção - Daniel Filho, roteiro - Bosco Brasil), em que a magia do teatro - e, por conseguinte o das artes - é capaz de despertar e incutir nos corações mais brutos e insensíveis o ideal de humanidade. Esse filme, sem erro em dizer, é uma verdadeira Ode de Amor ao Teatro que resgata e salva. Isso demonstra que cada um, a seu jeito, pode fazer alguma coisa para melhorar o que "parece" não ter mais jeito. Vamos respeitar as regras no trânsito para melhorar o tráfego de automóveis e pedestres; vamos respeitar a limpeza pública, para que todos caminhem por espaços agradáveis; vamos respeitar enquanto atendentes e atendidos nos comércios e órgãos públicos, para que todos alcancem seus objetivos em cada um desses lugares com dignidade. Não parece difícil. Mas, o mais importante disso tudo, é mostrar aos nossos filhos como nos comportamos em relação aos outros, para que eles tenham orgulho de se comportarem da mesma maneira respeitosa.

Não parar em filas duplas em frente às escolas, onde centenas de crianças ao ver tal atitude se perguntarão: por que todos estão na fila correta e aquele sujeito não? O que ele tem de diferente? Será que eu poderei agir assim também?
Não estacionar seu carro tomando mais que a vaga devida e demarcada, dando a oportunidade para que outros também possam utilizar aquele espaço, fazendo ver ao nosso filho e às demais crianças que o aproveitamento racional e o acatamento às regras melhoram a convivência entre todos os que necessitam e igualmente fazem jus àquela vaga.
Tratar com o máximo de decência a quem nos serve na prestação de serviço, pois esses profissionais vendem a força de trabalho e não a dignidade. Todos nós servimos e somos servidos em praticamente todos os momentos da nossa vida e nossos filhos precisam reconhecer que a função do ser humano é auxiliar seu semelhante, e que tratar com deferência faz parte de ambas as partes.

Por ora, enquanto as ações estão apenas na fase das idéias e ideais, prestemos atenção e reverenciemos a mais uma vítima da crueldade, da frieza, da hostilidade da raça humana. É mais um ente que nunca mais fará parte de nosso mundo, de nossas recreações, tão somente porque, mais uma vez, negligenciamos; permanecemos estáticos e sem o mínimo esforço deixamos as trágicas conseqüências da selvageria, que impera no universo, seguir seu triste e tão sórdido caminho, para um objetivo único: exterminar de vez com a pequena dimensão que ocupa hoje a paz em todo o mundo.

Não deixemos que novas vítimas sejam feitas, não deixemos que sejam levados de nós os entes queridos. Sejamos solidários, confraternizemo-nos; sejamos uma família só, construindo o nosso lar com flores, harmonia, pureza e felicidade autênticas. Respiremos o ar da liberdade. Abandonemos para sempre o oxigênio da angústia, da agonia, da depressão. Enfim, desmantelemos de vez toda e qualquer causa geradora de sentimentos atrozes e vingativos que nunca nos deveriam ter acometidos e que, se descuidarmos, poderá ser a nossa ruína total.

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